quarta-feira, junho 29, 2005

Tatuagem

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes

Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra

terça-feira, junho 14, 2005

Dorothy Parker



Eu sou grande fã de Dorothy Parker. Escritora, crítica literária, dramaturga, poeta e acima de tudo, uma mulher fabulosa. Foi revolucionária, marcou a sua época, falava as coisas que nenhuma outra mulher se atrevia a verbalizar, com ironia fina e inteligência incomum. A vida dela merece um post maior, que eu vou ficar devendo. Por enquanto, coloco aqui um dos meus poemas favoritos. Fica só para quem fala inglês, mas eu não sei onde encontrar uma boa tradução e com certeza não teria o atrevimento de fazer uma eu mesma.

The Lady's Reward

Lady, lady, never start
Conversation toward your heart;
Keep your pretty words serene;
Never murmur what you mean.
Show yourself, by word and look,
Swift and shallow as a brook.
Be as cool and quick to go
As a drop of April snow;
Be as delicate and gay
As a cherry flower in May.
Lady, lady, never speak
Of the tears that burn your cheek-
She will never win him, whose
Words had shown she feared to lose.
Be you wise and never sad,
You will get your lovely lad.
Never serious be, nor true,
And your wish will come to you-
And if that makes you happy, kid,
You'll be the first it ever did.

quarta-feira, junho 01, 2005

Breve Elogio da Mentira

Ah, ela. A filha do diabo, a das pernas curtas, a origem de todo o mal. Mais abundante antes de uma eleição, durante uma guerra e depois de uma pescaria. Em versão comum, sagrada e estatística. Ela. A mentira. Condenada sem apelação pela religião, a moral, a ética e os contos de fadas. Tão horrível que, dizem, tem um setor especial no inferno para recepcionar seus adeptos*.

Estamos mais do que acostumados a censurar a mentira. Valorizamos, em alto e bom som, a honestidade completa na vida privada e pública. Ensinamos nossos filhos que mentir é muito feio, condenamos os mentirosos e gostamos muito de dizer o quanto somos sinceros. Ah, sim: também contamos, em média, sete mentiras por dia.

É muito fácil censurar a mentira e a falsidade. Elas podem, de fato, provocar grandes estragos. Mentiras provocam, “justificam” ou encobrem guerras, epidemias, golpes de estado, crimes os mais variados e todo o tipo de sacanagem cotidiana. Para certas pessoas e posições, é indesculpável: jornalistas, médicos e chefes de estado, só citando alguns, não deveriam jamais mentir no exercício da profissão (naturalmente que isso não impede que o façam constantemente). Porém ela, assim como a verdade, possui muitos lados. Gostemos ou não, precisamos mentir.

Vamos encarar os fatos. Sem a instituição da mentira, a vida em sociedade seria impossível**. Note-se que não estou falando da mentira pelo erro, quando fazemos uma afirmação falsa porque acreditamos que seja verdade. Estou falando da mentira mesmo, quando existe a intenção de iludir, esta é necessária sim. Até mesmo animais conhecem essa necessidade, já que boa parte deles também sabe enganar***. Precisamos mentir constantemente para garantir a paz das nossas relações, nossa reputação e nossa privacidade. Ela garante nosso sossego e muitas vezes nossa própria sobrevivência.

Pense nas mentiras diárias que contamos. Aquelas pequenas que vão desde o “tudo bem, e você?” quando estamos tendo um dia péssimo até o número ridiculamente baixo de parceiros que damos ao nosso marido/mulher/namorado(a) que perguntou com quantas pessoas já dormimos. E no meio disso existem todas aquelas coisas como "Sim, é muito bonita a blusa, Fulana", "Ah, desculpe, mas já tenho um compromisso no sábado...", "Puxa, vó, está uma delícia mesmo!", “Eu sei que me atrasei, mas o trânsito estava horrível!”. Atire a primeira pedra!

Essas mentiras que protegem os sentimentos alheios e nossa intimidade são essenciais. Desafie alguém a passar um mês sem contar absolutamente NENHUMA mentira. Se algum louco aceitar, ao fim desse tempo é bem provável que ele tenha perdido o emprego, a maior parte dos amigos e esteja brigado com a família. Digo mais: uma pessoa inabalavelmente sincera é, em minha opinião, cruel e egoísta. É incapaz de suavizar ou esconder uma verdade dolorosa e muitas vezes desnecessária em benefício da paz de outra pessoa, que talvez vivesse muito bem sem ela. São elas que dizem na cara de uma parturiente exausta que ela engordou, que o presente carinhosamente escolhido é horroroso, que a amiga fez muito bem de largar o namorado porque ele a traiu horrores. Tudo isso com muito orgulho de sua virtude, de sua incapacidade de mentir. Monstros de sinceridade.

Defendida a mentira, basta lembrar a sua face maligna e não exatamente celebrá-la. Na maioria das vezes, nos basta lembrar que ela está em toda a parte, que precisamos dela e que ela faz parte de nós. Se formos obrigados a usá-la então, façamos isso sem culpa e com uma polida cara-de-pau.

* - O círculo da fraude, descrito por Dante Alighieri na Divina Comédia. Nele estão os sedutores, os aduladores, simoníacos, adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, fazedores de intrigas e os falsificadores. Abaixo dele está o círculo da traição, considerada um tipo de fraude mais grave.

** - Isso porque estou me concentrando na mentira verbalizada, já que se eu começar a falar de sorrisos amarelos, Louis Vuitton de camelô e sutiãs com enchimento, essa discussão não vai acabar nunca.

*** - Além do mimetismo, muito comum entre insetos, peixes e répteis, vários mamíferos sabem fingir-se de mortos para desanimar um inimigo, como gambás e cachorros. Primatas vão mais além: Richard Byrne, um especialista em psicologia desses animais, descreveu em um de seus livros como viu um pequeno babuíno, vendo um jovem adulto desenterrar a muito custo uma raiz, deu um grito que alertou sua mãe. Ela, acreditando que o outro havia machucado seu filhote, imediatamente o atacou, fazendo com que ele largasse o que estava fazendo e fugisse. Enquanto isso, o pequeno babuíno calmamente pegou a preciosa raiz e a comeu.