O Leitor e o Crítico
La reproduction interdite - René Magritte
O Leitor se dava super bem com o Crítico. Não tinham se conhecido pessoalmente mas, na opinião do Leitor, nem precisava. Aliás, o fato do Crítico nem ter idéia da sua existência não incomodava o Leitor de jeito nenhum. Porque ele sabia que o Crítico, mesmo sem saber, era quase sua alma gêmea: eles concordavam em tudo, de uma maneira quase mágica.
Começou meio por acaso. O Leitor estava folheando o jornal de sábado, vendo a programação da TV. E reparou na crítica do filme da sessão da madrugada, que, nas palavras do autor, era “uma comédia muito acima da média, a única feita pelo diretor fulano, infelizmente”. Achou interessante, um elogio tão aberto, uma descrição tão a seu gosto, tudo que ele gostava num filme para matar o fim de semana. Assistiu. Literalmente se mijou de rir e continuou rindo sozinho no intervalo, enquanto trocava o calção do pijama e levava a almofada da poltrona para o tanque, cerveja durante o filme nunca mais. Nessa ocasião o Leitor deu o crédito para o jornal. Na segunda vez que isso aconteceu, quando a mesma coluna recomendou um faroeste que o Leitor amava, com palavras que eram as que ele gostaria de usar se tivesse jeito para escrever (não tinha, o Leitor era gerente de banco e sempre pegava exame de redação na escola), ele prestou atenção no nome que assinava o artigo. Foi aí que ele foi apresentado ao Crítico.
Pouco a pouco, uma crítica por vez, o Leitor foi conquistado. Começou a procurar o nome do Crítico quando ia assistir um filme na televisão e não demorou a descobrir a mesma assinatura nos guias de cinema e começou a sair mais de casa para ver os filmes, orientado pela coluna. No começo o Leitor não levava muito a sério, às vezes ia ver um título que o Crítico não havia gostado. Sempre se arrependia, voltava para casa e olhava o jornal aberto, a matéria do Crítico ali, apontando exatamente os mesmos defeitos que ele notara, eu não avisei? Não demorou muito para chegar ao ponto em que, se o Crítico não recomendasse, o Leitor nem queria saber. Os amigos começaram até a tirar sarro, mas acabavam respeitando a mania e a confiança no Crítico. Ele sempre acertava.
O Leitor, claro, ficava intrigado. Foi tentar entender, botou o nome do Crítico no Google, queria saber quem era esse cara de gosto tão igual ao seu. Encontrou pouca coisa. Achou algumas críticas mais antigas (com as quais ele, naturalmente, concordava), algumas matérias de revistas e jornais de média circulação, descobriu a formação e a idade do Crítico, só. Nenhuma foto, nada de muito pessoal, nada que explicasse aquela identidade de preferências tão absurda. O Leitor desistiu. Chegou a mandar um e-mail para a coluna do Crítico, comentando, mas não obteve resposta e se sentiu meio ridículo. Preferiu deixar para lá e continuar lendo e seguindo o que ele escrevia.
Mas um dia, como acontece com todos os relacionamentos, algo deu errado. O Leitor foi, confiante, mas estranhando um pouco, assistir um filme muito recomendado pelo Crítico que não parecia nem um pouco o estilo deles. O Leitor se sentiu ainda menos à vontade ao ver as garotas pré-adolescentes na fila, em grupos. Estranho aquilo. Alguma coisa insuspeita, muito surpreendente devia haver naquele filme aparentemente tão ruim.
Não tinha. O Leitor saiu atônito do cinema, sem entender. Se o Crítico não tivesse recomendado, ele teria saído no meio. Ficara até o fim, esperando uma reviravolta, alguma coisa que justificasse os elogios da coluna. Nada. Ele mal podia acreditar. Ficou tão atordoado que nem lembrava onde havia parado o carro.
Depois veio a indignação. Como o Crítico podia ter feito aquilo com ele? Como? Desperdiçara tempo e dinheiro, ora essa! Como o Crítico conseguiu, tão descaradamente recomendar um filme tão ruim? Aquilo não tinha explicação! Ou tinha? O Leitor começou a pensar e chegou a uma conclusão, indignado: jabá, só pode ser! A distribuidora pagou para ele escrever aquilo, o vendido, o safado, que falta de ética! Ah, isso não pode ficar assim!
No dia seguinte o Leitor manda um e-mail furioso, garantindo antes que o assunto da mensagem fosse chamativo o suficiente. Conta a sua história, revela sua confiança anterior no Crítico e explica como ele a quebrara com sua traição, sua opinião em troca de dinheiro, que absurdo! Está tudo rompido entre nós, gritava a mensagem. Arrasado, o Leitor prometeu para si mesmo que nunca mais lia a coluna do Crítico. Ele não era confiável.
Dois dias depois, o Leitor tomou um susto. Estava lá no, e-mail, uma mensagem do Crítico. Resposta ao seu revoltado desabafo (do qual o Leitor agora estava um pouco envergonhado). Não imaginava o que podia ser. Uma confissão? Xingamentos piores? Resposta automática? Não. Nela, descobriu o Leitor, o Crítico explicava, num tom muito educado e um tanto ofendido, que realmente gostara do filme. Explicava, com mais detalhes que a coluna, o que lhe chamara a atenção, porque o elogiara. Lamentava o desgosto do Leitor, mas dizia que era sim muito sério em seu trabalho e se a crítica não fora útil, era uma pena. Ele, Crítico, havia se esforçado como profissional. Que por favor, o Leitor nunca pensasse que ele faria um jabá nem nada parecido e que conferisse sempre a coluna, grato, Crítico.
O Leitor não fez nada. Releu a mensagem, fechou-a e voltou a trabalhar. Parou de ir tanto ao cinema e começou a ver mais futebol na TV. E, claro, parou de acreditar em almas gêmeas.
Começou meio por acaso. O Leitor estava folheando o jornal de sábado, vendo a programação da TV. E reparou na crítica do filme da sessão da madrugada, que, nas palavras do autor, era “uma comédia muito acima da média, a única feita pelo diretor fulano, infelizmente”. Achou interessante, um elogio tão aberto, uma descrição tão a seu gosto, tudo que ele gostava num filme para matar o fim de semana. Assistiu. Literalmente se mijou de rir e continuou rindo sozinho no intervalo, enquanto trocava o calção do pijama e levava a almofada da poltrona para o tanque, cerveja durante o filme nunca mais. Nessa ocasião o Leitor deu o crédito para o jornal. Na segunda vez que isso aconteceu, quando a mesma coluna recomendou um faroeste que o Leitor amava, com palavras que eram as que ele gostaria de usar se tivesse jeito para escrever (não tinha, o Leitor era gerente de banco e sempre pegava exame de redação na escola), ele prestou atenção no nome que assinava o artigo. Foi aí que ele foi apresentado ao Crítico.
Pouco a pouco, uma crítica por vez, o Leitor foi conquistado. Começou a procurar o nome do Crítico quando ia assistir um filme na televisão e não demorou a descobrir a mesma assinatura nos guias de cinema e começou a sair mais de casa para ver os filmes, orientado pela coluna. No começo o Leitor não levava muito a sério, às vezes ia ver um título que o Crítico não havia gostado. Sempre se arrependia, voltava para casa e olhava o jornal aberto, a matéria do Crítico ali, apontando exatamente os mesmos defeitos que ele notara, eu não avisei? Não demorou muito para chegar ao ponto em que, se o Crítico não recomendasse, o Leitor nem queria saber. Os amigos começaram até a tirar sarro, mas acabavam respeitando a mania e a confiança no Crítico. Ele sempre acertava.
O Leitor, claro, ficava intrigado. Foi tentar entender, botou o nome do Crítico no Google, queria saber quem era esse cara de gosto tão igual ao seu. Encontrou pouca coisa. Achou algumas críticas mais antigas (com as quais ele, naturalmente, concordava), algumas matérias de revistas e jornais de média circulação, descobriu a formação e a idade do Crítico, só. Nenhuma foto, nada de muito pessoal, nada que explicasse aquela identidade de preferências tão absurda. O Leitor desistiu. Chegou a mandar um e-mail para a coluna do Crítico, comentando, mas não obteve resposta e se sentiu meio ridículo. Preferiu deixar para lá e continuar lendo e seguindo o que ele escrevia.
Mas um dia, como acontece com todos os relacionamentos, algo deu errado. O Leitor foi, confiante, mas estranhando um pouco, assistir um filme muito recomendado pelo Crítico que não parecia nem um pouco o estilo deles. O Leitor se sentiu ainda menos à vontade ao ver as garotas pré-adolescentes na fila, em grupos. Estranho aquilo. Alguma coisa insuspeita, muito surpreendente devia haver naquele filme aparentemente tão ruim.
Não tinha. O Leitor saiu atônito do cinema, sem entender. Se o Crítico não tivesse recomendado, ele teria saído no meio. Ficara até o fim, esperando uma reviravolta, alguma coisa que justificasse os elogios da coluna. Nada. Ele mal podia acreditar. Ficou tão atordoado que nem lembrava onde havia parado o carro.
Depois veio a indignação. Como o Crítico podia ter feito aquilo com ele? Como? Desperdiçara tempo e dinheiro, ora essa! Como o Crítico conseguiu, tão descaradamente recomendar um filme tão ruim? Aquilo não tinha explicação! Ou tinha? O Leitor começou a pensar e chegou a uma conclusão, indignado: jabá, só pode ser! A distribuidora pagou para ele escrever aquilo, o vendido, o safado, que falta de ética! Ah, isso não pode ficar assim!
No dia seguinte o Leitor manda um e-mail furioso, garantindo antes que o assunto da mensagem fosse chamativo o suficiente. Conta a sua história, revela sua confiança anterior no Crítico e explica como ele a quebrara com sua traição, sua opinião em troca de dinheiro, que absurdo! Está tudo rompido entre nós, gritava a mensagem. Arrasado, o Leitor prometeu para si mesmo que nunca mais lia a coluna do Crítico. Ele não era confiável.
Dois dias depois, o Leitor tomou um susto. Estava lá no, e-mail, uma mensagem do Crítico. Resposta ao seu revoltado desabafo (do qual o Leitor agora estava um pouco envergonhado). Não imaginava o que podia ser. Uma confissão? Xingamentos piores? Resposta automática? Não. Nela, descobriu o Leitor, o Crítico explicava, num tom muito educado e um tanto ofendido, que realmente gostara do filme. Explicava, com mais detalhes que a coluna, o que lhe chamara a atenção, porque o elogiara. Lamentava o desgosto do Leitor, mas dizia que era sim muito sério em seu trabalho e se a crítica não fora útil, era uma pena. Ele, Crítico, havia se esforçado como profissional. Que por favor, o Leitor nunca pensasse que ele faria um jabá nem nada parecido e que conferisse sempre a coluna, grato, Crítico.
O Leitor não fez nada. Releu a mensagem, fechou-a e voltou a trabalhar. Parou de ir tanto ao cinema e começou a ver mais futebol na TV. E, claro, parou de acreditar em almas gêmeas.
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