Ah, ela. A filha do diabo, a das pernas curtas, a origem de todo o mal. Mais abundante antes de uma eleição, durante uma guerra e depois de uma pescaria. Em versão comum, sagrada e estatística. Ela. A mentira. Condenada sem apelação pela religião, a moral, a ética e os contos de fadas. Tão horrível que, dizem, tem um setor especial no inferno para recepcionar seus adeptos*.
Estamos mais do que acostumados a censurar a mentira. Valorizamos, em alto e bom som, a honestidade completa na vida privada e pública. Ensinamos nossos filhos que mentir é muito feio, condenamos os mentirosos e gostamos muito de dizer o quanto somos sinceros. Ah, sim: também contamos, em média, sete mentiras por dia.
É muito fácil censurar a mentira e a falsidade. Elas podem, de fato, provocar grandes estragos. Mentiras provocam, “justificam” ou encobrem guerras, epidemias, golpes de estado, crimes os mais variados e todo o tipo de sacanagem cotidiana. Para certas pessoas e posições, é indesculpável: jornalistas, médicos e chefes de estado, só citando alguns, não deveriam jamais mentir no exercício da profissão (naturalmente que isso não impede que o façam constantemente). Porém ela, assim como a verdade, possui muitos lados. Gostemos ou não, precisamos mentir.
Vamos encarar os fatos. Sem a instituição da mentira, a vida em sociedade seria impossível**. Note-se que não estou falando da mentira pelo erro, quando fazemos uma afirmação falsa porque acreditamos que seja verdade. Estou falando da mentira mesmo, quando existe a intenção de iludir, esta é necessária sim. Até mesmo animais conhecem essa necessidade, já que boa parte deles também sabe enganar***. Precisamos mentir constantemente para garantir a paz das nossas relações, nossa reputação e nossa privacidade. Ela garante nosso sossego e muitas vezes nossa própria sobrevivência.
Pense nas mentiras diárias que contamos. Aquelas pequenas que vão desde o “tudo bem, e você?” quando estamos tendo um dia péssimo até o número ridiculamente baixo de parceiros que damos ao nosso marido/mulher/namorado(a) que perguntou com quantas pessoas já dormimos. E no meio disso existem todas aquelas coisas como "Sim, é muito bonita a blusa, Fulana", "Ah, desculpe, mas já tenho um compromisso no sábado...", "Puxa, vó, está uma delícia mesmo!", “Eu sei que me atrasei, mas o trânsito estava horrível!”. Atire a primeira pedra!
Essas mentiras que protegem os sentimentos alheios e nossa intimidade são essenciais. Desafie alguém a passar um mês sem contar absolutamente NENHUMA mentira. Se algum louco aceitar, ao fim desse tempo é bem provável que ele tenha perdido o emprego, a maior parte dos amigos e esteja brigado com a família. Digo mais: uma pessoa inabalavelmente sincera é, em minha opinião, cruel e egoísta. É incapaz de suavizar ou esconder uma verdade dolorosa e muitas vezes desnecessária em benefício da paz de outra pessoa, que talvez vivesse muito bem sem ela. São elas que dizem na cara de uma parturiente exausta que ela engordou, que o presente carinhosamente escolhido é horroroso, que a amiga fez muito bem de largar o namorado porque ele a traiu horrores. Tudo isso com muito orgulho de sua virtude, de sua incapacidade de mentir. Monstros de sinceridade.
Defendida a mentira, basta lembrar a sua face maligna e não exatamente celebrá-la. Na maioria das vezes, nos basta lembrar que ela está em toda a parte, que precisamos dela e que ela faz parte de nós. Se formos obrigados a usá-la então, façamos isso sem culpa e com uma polida cara-de-pau.
* - O círculo da fraude, descrito por Dante Alighieri na Divina Comédia. Nele estão os sedutores, os aduladores, simoníacos, adivinhos, corruptos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, fazedores de intrigas e os falsificadores. Abaixo dele está o círculo da traição, considerada um tipo de fraude mais grave.
** - Isso porque estou me concentrando na mentira verbalizada, já que se eu começar a falar de sorrisos amarelos, Louis Vuitton de camelô e sutiãs com enchimento, essa discussão não vai acabar nunca.
*** - Além do mimetismo, muito comum entre insetos, peixes e répteis, vários mamíferos sabem fingir-se de mortos para desanimar um inimigo, como gambás e cachorros. Primatas vão mais além: Richard Byrne, um especialista em psicologia desses animais, descreveu em um de seus livros como viu um pequeno babuíno, vendo um jovem adulto desenterrar a muito custo uma raiz, deu um grito que alertou sua mãe. Ela, acreditando que o outro havia machucado seu filhote, imediatamente o atacou, fazendo com que ele largasse o que estava fazendo e fugisse. Enquanto isso, o pequeno babuíno calmamente pegou a preciosa raiz e a comeu.